Elogio do Voluntário
- Blog Bolsa do Voluntariado

- 12 de dez. de 2023
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Atualizado: 22 de out.
Na nossa luta constante por uma sociedade mais decente, há sempre lugar para mais cuidados dos serviços públicos, do Estado e das autarquias. Assim como das instituições tradicionais, Igrejas, associações e universidades. Sem esquecer as empresas privadas, que também podem e devem dar um contributo para a nossa vida em comum. Mas acrescento, a todas essas instâncias, o voluntariado. Para a qualidade da nossa sociedade, este é tão importante quanto a protecção de instituições e a prestação de serviços públicos. Aliás, se olharmos com cuidado, é nas sociedades mais desenvolvidas que se verificam elevados níveis de intervenção do voluntariado. Temos por vezes a impressão de que é nas nações mais atrasadas que as actividades de voluntariado proliferam. É um erro. Sabemos que é nas sociedades mais modernas e mais ricas onde são enormes as carências, mas sobretudo onde é grande a disponibilidade para a acção voluntária e são numerosas as pessoas que a tal se dedicam.
Na verdade, nas sociedades mais modernas, são grandes as necessidades de acção dos cidadãos. A complexidade da vida em comum assim o exige. A permanente desigualdade social é de muito difícil extinção. É intensa a força centrífuga do desenvolvimento, isto é, o modo como tantos são deixados de lado ou à margem: idosos, doentes, órfãos, pobres, desempregados, deficientes, reclusos, dependentes, vítimas de violência… é um sem número de situações e de condições a que é sempre necessário acudir e a que muitas vezes as entidades públicas não têm capacidade ou não prestam atenção. Isto, evidentemente, se nos esforçamos por uma sociedade mais decente e por graus decrescentes de desigualdade. Com uma observação de realismo: o voluntariado não diminui as desigualdades, antes acode às suas consequências. O voluntariado não luta contra a destituição ou a opressão, antes socorre e apoia os que delas sofrem. O voluntariado não é uma forma de acção política, antes é uma modalidade de solidariedade e de acção cívica.
Muitas são as definições possíveis de voluntariado. Variam nos objectivos, nos adjectivos e nas especialidades. Todas podem ser excelentes. Mas, por vezes, essas definições perdem-se na variedade e na especificidade e escondem o essencial. E este resume-se a pouco. É a decisão pessoal, de livre escolha, de dedicar aos outros tempo, esforços e solidariedade, sem obter remuneração ou vantagens de qualquer espécie. É a decisão individual e autónoma de juntar o seu esforço ao de outros a fim de ajudar quem necessita. O voluntário ou voluntária tenta aliviar ou combater a dor dos outros, o luto, o sofrimento, a necessidade, a fome, a vulnerabilidade, a doença e a solidão. O voluntário faz isso sem obter ganhos em troca. O que o voluntário faz é por sua exclusiva decisão, sem receber ordens ou instruções. O voluntário pode agir por muitas razões, mas as principais e as que mais nos interessam são os sentimentos de solidariedade, o sentido de pertença, a noção de responsabilidade perante os outros, o amor ao próximo, o desinteresse, a consciência do dever de cidadania e a compaixão. O voluntariado é a escolha livre de quem deseja ajudar os outros, sabendo que se tem vindo a descobrir que essa actividade também pode ser uma terapia pessoal de quem sofre de solidão e encontra realização no esforço colectivo.
O que o voluntário faz no quadro de uma entidade e de uma acção colectiva depende da organização e das tarefas programadas, em função da gestão dos projectos e das iniciativas, mas foi ele que decidiu previamente integrar esse esforço organizado. Se é contra a sua vontade, então não é voluntário.
O voluntariado é uma das componentes da “reserva de compaixão de uma sociedade”. Nesse sentido, faz parte dos valores mais humanos e mais dignos da sociedade. O voluntário dá aos outros parte do seu tempo, da sua vida e do seu esforço. Dá, a quem precisa, o melhor de si. Dá-se a si próprio. Organiza-se para poder dar. O voluntário age com a discrição devida, sem procurar projecção pessoal, mas pode também dar o seu nome para suscitar adesões ou despertar vocações. Mas o voluntário não procura, com o seu gesto, receber vantagens e promoção ou ganhar clientes.
Não se condena quem age a favor de outrem com intuitos publicitários, à procura de mercado, de reputação e de outras vantagens, mas a essa actividade, que pode ser benéfica e vantajosa, não se chama voluntariado. Poderá até designar-se como acção solidária, mas voluntariado não é. O voluntariado não é um gesto superior a outros, mais virtuoso ou mais genuíno. Não! É apenas diferente e como tal deve ser considerado.
As razões desta diferença são várias. Mas uma parece essencial: o apoio público ou colectivo deve canalizar-se de preferência para actividades voluntárias e não para campanhas interessadas. As entidades não governamentais, sem fins lucrativos, que integram trabalho voluntário merecem preferencialmente apoios e atenção. É para estas que se devem destinar os esforços públicos, bens e equipamentos, deduções e isenções, autorizações e apoio.
O voluntariado vem antes e depois dos direitos sociais. Estes últimos, contemporâneos, consagram na Constituição e nas leis valores essenciais para a vida em sociedade. Valores que, antes de serem consagrados como direitos, podiam já ser acatados e praticados, mas que eram sobretudo o resultado das vontades de indivíduos e de instituições. O direito social transformou em valor positivo, formal e legal, valores humanos, que, previamente, eram seguidos ou respeitados apenas por vontade das pessoas e das suas organizações. Que podiam ou não ser respeitados. O que criava dependência, por vezes humilhação.
A afirmação dos direitos sociais ao trabalho, à saúde, à educação, à segurança social, à habitação, ao ambiente e à protecção, entre outros, é um momento particularmente feliz da evolução da humanidade e das sociedades. Essa afirmação foi precedida pelo voluntariado de todas as formas, da previdência à caridade, da misericórdia à benemerência, do socorro à entreajuda. Codificados esses direitos, depressa se verificou que, sem a vontade das pessoas, sem o empenho pessoal e sem a dedicação das comunidades, tais direitos ficam incompletos. Não totalmente, pois as instituições e os serviços oficiais podem desempenhar funções e concretizar programas. Mas sabe-se que, sem a dedicação pessoal e sem o acto individual de compaixão, tais valores e direitos nunca são completos, nunca são verdadeiramente humanos. E assim voltamos ao voluntariado. Antes e depois dos direitos sociais, é indispensável à sua criação e à sua prática. Visite-se um hospital, um lar ou uma prisão: quem lá encontramos são seguramente voluntários. Faça-se o roteiro dos sem abrigo ou dos mendigos: são voluntários aqueles que cruzamos.
O que não quer dizer que se deva ou possa subvalorizar os direitos sociais. De modo algum! O valor do direito social é enorme e de grande significado. Obriga a sociedade a cuidar dos seus. Reconhece o valor humano e a necessidade como direito que a todos diz respeito. Confere a cada um a dignidade, sem a eventual humilhação da dependência. O direito social é tão nobre quanto o direito do cidadão. Sem que sejam iguais, os direitos sociais são hoje tão importantes quanto os direitos cívicos e os clássicos direitos humanos.
Mas os especiais atributos do voluntariado devem ser sublinhados. O da escolha livre e autónoma vem à cabeça. É o primeiro e mais específico. Mas há mais. O voluntariado faz-se com razão, evidentemente, mas também e talvez sobretudo com sentimento, emoção e sentido da solidariedade. O voluntário não cumpre deveres, segue um sentimento. O voluntário não acata uma lei, cumpre um imperativo moral interior. O voluntário faz quando falta quase tudo o resto, a família, o Estado, a autarquia e a empresa. É possível que o voluntariado se faça também por motivos mais interessados, como o dever, a reputação ou até a vaidade. Mesmo por esses motivos, o voluntariado tem mérito.
E não tenho dúvidas em valorizar o voluntariado sem interesse indirecto, sem publicidade, sem promoção, sem lucros de bom-nome e reputação, sem vaidade…. Ser voluntário pode significar simplesmente contrariar as tendências sociais tão fortes do lucro, da eficiência económica, da vitória desportiva, da competição…. Ser voluntário pode até implicar que não se espera necessariamente uma recompensa divina…
O voluntariado não substitui o direito social nem o reconhecimento pela leis, normas e obrigações. Mas acrescenta-lhe uma dignidade humana e uma generosidade ausentes dos códigos de comportamento colectivo. Há muitas maneiras de traduzir a compaixão em realidade. De concretizar o amor ao próximo. De tornar real a solidariedade. De realizar o dever de cidadania. De ajudar a esclarecer e a elaborar direitos sociais e humanos, a considerar que todos têm esses direitos, a começar pelos direitos à protecção. Todas são válidas e têm a sua função.
Há também muitas fontes inspiradoras da solidariedade. A religião, por exemplo, que frequentemente comanda o amor aos outros. A política e a ideologia quando ordenam leis e normas para a solidariedade e para os grandes sectores da vida social, como sejam a educação, a saúde e a segurança. A identidade e a cultura que valorizam a comunidade. A gratidão de quem muito recebeu da vida ou muita sorte teve. Até a vaidade pode ser motivo para acção generosa. Em geral, estas formas de realização traduzem-se em leis, legados, dádivas, fundações, prémios e outras formas de realizar a filantropia. Mas há uma forma especial de ter compaixão e solidariedade e de as tornar reais: o voluntariado. Porque este exige muito de si próprio. De cada um, exige o seu tempo, a sua vida, a sua disponibilidade, a capacidade de se entregar, a prontidão com que se acorre à circunstância e socorre o necessitado.
Olhemos à nossa volta. Sabe-se que em Portugal o número de voluntários e de entidades dedicadas ao voluntariado está crescendo. São boas notícias. Mas ainda ficamos muito atrás dos restantes países europeus. As razões para esta diferença podem ser muitas. E podem ser procuradas na presença do Estado, na política, na religião e nas formas particulares de crença, nas culturas tradicionais, na pobreza e no atraso económico e social. São estudos a fazer. Mas o que é certo é que a tendência actual é muito positiva e denota um permanente crescimento da aptidão pelo voluntariado.
Sabe-se também que o voluntariado se conjuga sobretudo no feminino. Podemos ter a certeza de que, entre voluntários, nos hospitais, nos lares, nas prisões e noutras instituições, a grande maioria é composta por mulheres. Esperemos que elas nunca deixem de ser. Mas podemos esperar que os homens também queiram ser.
Além disso, é provável que haja uma relação especial entre voluntariado e religião, igreja ou culto. Directamente através de organizações ou por imperativo religioso, o voluntário age muitas vezes movido por força transcendente. “Amar o próximo” é a fórmula mais frequente entre nós. E também aqui podemos esperar que os valores da cidadania e da solidariedade estejam na origem de iniciativas ou actos de voluntariado.
Quando passamos na cidade e vemos crianças a atravessar as ruas com ajuda de adulto, é quase certo que este é um voluntário. E são tantas as actividades e as situações em que voluntários cumprem tarefas essenciais e importantes. De coisas simples, como a limpeza das praias, até trabalhos complexos como prover alimentos em caso de desastre. De acções quase secretas que exigem uma excepcional dedicação, como sejam o acompanhamento nos últimos dias de vida, até ao apoio em doenças longas e graves, como o cancro. De acções mais visíveis e imponentes como a dos bombeiros voluntários. Uma coisa é certa: onde vemos voluntários, vemos a humanidade: no universo dos sem abrigo, nas prisões, nos hospitais, nos secretos mundos da solidão de cada um, sobretudo de quem sofre e é sozinho. Onde vemos voluntários, muitas vezes, é onde não vemos mais ninguém, na doença, na exclusão, sob violência, na reclusão…
As sociedades contemporâneas são em parte regidas pela mercadoria e pela recompensa material. São frequentemente destituídas de humanidade e indiferentes ao sofrimento. Há vazio na sociedade. O deserto do colectivismo e a solidão do individualismo destroem o valor humano da vida e condicionam a liberdade e a dignidade da humanidade. O voluntariado é o antídoto e a crítica da indiferença.
O voluntariado é isso. Os voluntários sabem que cada pessoa é essa pessoa e que cada família é essa família. Os voluntários dão o que faz falta e que outros não podem dar. O tempo e a disponibilidade. A atenção. O afecto e o sentido do humano. O ouvido e a palavra. A companhia e a mão.
António Barreto
Lisboa, 5 de Dezembro de 2023
Este texto foi proferido no Dia mundial do Voluntariado no IPO – Liga Portuguesa contra o Cancro.








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